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Competência Penal: A Definição do Juízo Pelo Lugar da Infração e Domicílio do Réu
Introdução: A Essência da Competência Territorial
A competência é um dos pilares do processo penal, garantindo o princípio do juiz natural. Este princípio assegura que ninguém será julgado por um tribunal de exceção, mas sim por uma autoridade imparcial e previamente estabelecida pela lei. Para que essa garantia se concretize, o sistema jurídico estabelece critérios claros de fixação de competência, permitindo identificar qual juízo é o responsável por processar e julgar cada delito.
Dentre os critérios elencados no Art. 69 do Código de Processo Penal (CPP), o lugar da infração
(inciso I) desponta como o mais relevante. Este artigo se aprofundará nas nuances desse critério principal e na sua relação subsidiária com o domicílio do réu
, além de explorar as importantes exceções e casos especiais.
A Competência Pelo Lugar da Infração: A Teoria do Resultado como Base
A regra geral para determinar a competência territorial está consagrada no Art. 70 do CPP. Por força desse dispositivo, o lugar da infração
é aquele em que o crime se consumou. Essa é a base da Teoria do Resultado, amplamente adotada pelo Código de Processo Penal
. A consumação
representa o ponto final do iter criminis (o "caminho do crime"), ou seja, o momento em que a conduta criminosa atinge sua plena realização, com a produção de todos os elementos típicos.
Para compreender a consumação, é fundamental diferenciar os tipos de crime:
- Crimes Formais: Caracterizam-se por se consumarem com a mera prática da conduta, independentemente da produção de um resultado naturalístico específico. O resultado é mero exaurimento ou desdobramento posterior.
- Exemplo Detalhado: No crime de extorsão (
Art. 158 do Código Penal
), a consumação ocorre no momento em que a vítima sofre o constrangimento, ou seja, quando sua vontade é coagida. Não é necessário que o agente efetivamente receba a vantagem indevida para que o crime esteja consumado. Se o agente ameaça a vítima para obter dinheiro e a vítima, por medo, promete entregar, o crime já está consumado, mesmo que a entrega do dinheiro não ocorra.
- Exemplo Detalhado: No crime de extorsão (
- Crimes Materiais: Exigem a efetiva produção de um resultado naturalístico para sua consumação.
- Exemplo Detalhado: O homicídio (
Art. 121 do Código Penal
) é o exemplo mais clássico. O crime só se consuma com a morte da vítima. Se um indivíduo é baleado em uma cidade, mas só falece dias depois em um hospital de outra cidade, a consumação se dá no local do óbito. Outro exemplo é o furto (Art. 155 do Código Penal
), que se consuma com a efetiva subtração da coisa alheia móvel, independentemente da posse mansa e pacífica.
- Exemplo Detalhado: O homicídio (
- Crimes de Mera Conduta: Não apresentam um resultado naturalístico discernible. Consumam-se pela simples prática da conduta descrita no tipo penal.
- Exemplo Detalhado: A embriaguez ao volante (
Art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro
) se consuma no instante em que o indivíduo conduz o veículo sob a influência de álcool ou substância psicoativa, independentemente de ter causado um acidente ou de ter colocado alguém em perigo concreto.
- Exemplo Detalhado: A embriaguez ao volante (
Assim, adotando a Teoria do Resultado, o juízo competente será o da comarca ou seção judiciária onde o crime se consumou. Exemplo: Se um roubo a banco ocorre na cidade de São Paulo, e os assaltantes fogem com o dinheiro para o Rio de Janeiro, a competência para julgar o roubo será de São Paulo, pois a consumação (a efetiva subtração do dinheiro do banco) ocorreu naquela cidade.
A Tentativa e a Fixação da Competência
No caso de tentativa, o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. O iter criminis
é interrompido antes de sua fase final. Nesses cenários, a competência é definida pelo último local do ato de execução.
- Exemplo Detalhado: Um criminoso tenta arrombar um caixa eletrônico em Campinas, mas é surpreendido pela polícia e foge antes de conseguir subtrair qualquer valor. Embora o crime de furto não tenha se consumado, a competência para julgar a tentativa de furto será de Campinas, que foi o local do último ato executório.
A Distinção Fundamental entre CPP e Código Penal
É crucial não confundir os critérios de "local do crime" adotados pelo Código Penal (CP)
e "lugar da infração" pelo CPP
.
- O CPP (Art. 70), ao tratar da competência territorial (definindo onde o delito será processado e julgado), adota a Teoria do Resultado (local da consumação).
- O CP (Art. 6º), por sua vez, ao definir o local do crime para fins de aplicação da lei penal no espaço (se o crime foi cometido no Brasil ou no exterior), adota a Teoria da Ubiquidade. Por essa teoria, o crime é considerado ocorrido tanto no lugar da ação/omissão quanto no do resultado/consumação.
- Exemplo Detalhado: Um agente criminoso, que está na Argentina, dispara uma arma de fogo contra uma vítima que se encontra no Brasil, e esta vítima vem a falecer no território brasileiro. Para o
Código Penal
, o crime é considerado cometido tanto na Argentina (local da ação) quanto no Brasil (local do resultado), permitindo a aplicação da lei brasileira.
- Exemplo Detalhado: Um agente criminoso, que está na Argentina, dispara uma arma de fogo contra uma vítima que se encontra no Brasil, e esta vítima vem a falecer no território brasileiro. Para o
A Particularidade das Infrações de Menor Potencial Ofensivo
A Lei 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais Criminais
ou Lei do JECrim
), que regula as infrações de menor potencial ofensivo, estabelece uma regra de competência diferente da geral do CPP
. Para essas infrações, a competência é definida pelo local da ação ou omissão (Teoria da Atividade). Essa escolha visa facilitar a produção de provas e a celeridade do processo, aproximando o juízo do local onde os fatos ocorreram e as testemunhas geralmente se encontram.
- Exemplo Detalhado: Em uma discussão em uma rua de Belo Horizonte, uma pessoa agride fisicamente outra, causando uma lesão corporal leve (infração de menor potencial ofensivo). Mesmo que a vítima sinta a dor e os efeitos em outra cidade para onde viajou, a competência será de Belo Horizonte, pois foi onde a ação (agressão) ocorreu.
Desafios Transnacionais: Infrações à Distância
Os crimes que envolvem a atuação em mais de um território, seja nacional ou estrangeiro, demandam regras específicas para a fixação da competência:
- Infrações iniciadas no Brasil e consumadas no exterior: A competência será do local do último ato de execução praticado em território brasileiro.
- Exemplo Detalhado: Um grupo criminoso no Brasil planeja e envia, por meio de e-mails fraudulentos (phishing), um golpe de estelionato para uma vítima que reside em Portugal, e o prejuízo financeiro ocorre lá. A competência para julgar esse crime no Brasil será do local onde o último ato de execução (o envio dos e-mails ou a manipulação de dados) foi realizado em território brasileiro.
- Infrações iniciadas no exterior e resultado no Brasil: Se o último ato de execução foi praticado no exterior, mas o resultado ou a consumação ocorreu, ou deveria ter ocorrido, no Brasil, a competência será do local no Brasil onde esse resultado se deu.
- Exemplo Detalhado: Um terrorista de um país estrangeiro envia uma carta-bomba para um alvo específico em São Paulo, no Brasil. A bomba é interceptada e desarmada antes de atingir o alvo e explodir. Apesar do ato executório ter iniciado no exterior, a competência para julgar a tentativa de atentado no Brasil será do juiz da comarca de São Paulo, que é o local onde o resultado (a explosão e a morte) deveria ter ocorrido.
Critérios Específicos para Estelionato: A Lei 14.155/2021
A crescente onda de fraudes digitais impulsionou a criação de um critério de competência específico para determinadas modalidades de estelionato. A Lei 14.155/2021 alterou o CPP
, adicionando o Art. 70, § 4º, que estabelece:
§4º Nos crimes previstos no art. 171 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), quando praticados mediante depósito, mediante emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado ou mediante transferência de valores, a competência será definida pelo local do domicílio da vítima, e, em caso de pluralidade de vítimas, a competência firmar-se-á pela prevenção.
Essa alteração visa facilitar a vida da vítima, que muitas vezes sofria o prejuízo em sua cidade, mas precisava mover o processo para o local onde o golpista estava ou onde a consumação do crime ocorreu (como o banco onde o dinheiro caiu). Agora, a competência é do domicílio da vítima.
- Exemplo Detalhado: Uma pessoa residente em Belo Horizonte sofre um golpe de estelionato via
PIX
(transferência de valores), enviando dinheiro para uma conta fraudulenta localizada no Rio de Janeiro, operada por um criminoso em São Paulo. Pela regra anterior, a competência poderia ser do Rio de Janeiro ou São Paulo. Com a nova lei, a competência será da comarca de Belo Horizonte, facilitando o acesso da vítima à justiça. - Pluralidade de Vítimas: Se diversas vítimas em diferentes cidades forem afetadas pelo mesmo golpe (ex: um esquema de pirâmide online), a competência será definida pela prevenção. Ou seja, o primeiro juiz a tomar conhecimento do caso e praticar um ato decisório (como ordenar uma quebra de sigilo bancário) se tornará competente para todas as ações.
A Competência Subsidiária: O Domicílio ou Residência do Réu
O critério do domicílio ou residência do réu é de aplicação subsidiária em relação ao local da infração. Isso significa que ele só é utilizado quando não for possível determinar o lugar exato da consumação do crime. O Art. 72 do CPP é claro nesse sentido:
Art. 72. Não sendo conhecido o lugar da infração, a competência regular-se-á pelo domicílio ou residência do réu.
- Exemplo Detalhado: Um crime de furto ocorre dentro de um ônibus de viagem que cruza várias comarcas durante a noite. Não há testemunhas que possam precisar o momento exato ou a localização geográfica da subtração. Nesses casos, como o local da infração é incerto, a competência para o julgamento será definida pelo domicílio ou residência do réu (o suposto ladrão).
Exceções Notáveis: Onde a Teoria da Atividade Prevalece
Em alguns contextos específicos, a Teoria da Atividade
(onde a ação ou omissão ocorreu) prevalece sobre a Teoria do Resultado
na definição da competência territorial:
- Infrações de Menor Potencial Ofensivo: Como já mencionado, a
Lei 9.099/1995
expressamente define que o local da ação ou omissão é o competente para esses delitos. - Atos Infracionais: Embora não sejam crimes no sentido penal, os atos infracionais cometidos por adolescentes também seguem a regra da
Teoria da Atividade
. A competência é da Vara da Infância e Juventude do local onde a conduta foi praticada. - O Caso do Homicídio Plurilocal (Princípio do Esboço do Resultado): Esta é uma das exceções mais debatidas. Ocorre quando a ação ou omissão acontece em uma comarca, mas o resultado (a morte) em outra. Pela regra do
Art. 70 do CPP
, a competência seria do local do óbito. No entanto, a jurisprudência dosTribunais Superiores
firmou entendimento de que, para o homicídio plurilocal, a competência é do local da conduta, ou seja, do "esboço do resultado".- Exemplo Detalhado: Uma pessoa é agredida violentamente em Sete Lagoas (MG) e, devido à gravidade dos ferimentos, é encaminhada para um hospital em Belo Horizonte (MG), onde vem a falecer. Pela
Teoria do Resultado
pura, o julgamento seria de Belo Horizonte. Contudo, em respeito aoprincípio do esboço do resultado
, a competência é de Sete Lagoas. Isso se justifica pela maior facilidade probatória (testemunhas, perícias iniciais no local da agressão) e por uma política criminal que reconhece o impacto social do crime na comunidade onde a conduta inicial e mais violenta ocorreu.
- Exemplo Detalhado: Uma pessoa é agredida violentamente em Sete Lagoas (MG) e, devido à gravidade dos ferimentos, é encaminhada para um hospital em Belo Horizonte (MG), onde vem a falecer. Pela
A Escolha do Querelante: Ação Penal Privada
Para crimes de ação penal privada (aqueles que dependem da iniciativa da própria vítima, que assume a posição de querelante
), o CPP
confere uma flexibilidade extra na fixação da competência. O Art. 73 do CPP estabelece uma hipótese de foro de eleição em Direito Processual Penal
:
Art. 73. Nos casos de exclusiva ação privada, o querelante poderá intentar a ação no foro do domicílio ou da residência do réu, ainda quando conhecido o lugar da infração.
Isso significa que, enquanto a regra geral impõe o lugar da infração, na ação penal privada, o querelante
tem a opção de propor a demanda no local da consumação do delito ou no domicílio/residência do réu, mesmo que o lugar da infração seja perfeitamente conhecido.
- Exemplo Detalhado: Uma pessoa residente em Campinas (SP) sofre um crime de difamação (
Art. 139 do Código Penal
) através de uma publicação em um site, feita por um indivíduo que reside em Florianópolis (SC). A consumação da difamação pode ser considerada em Campinas (onde a vítima teve sua honra subjetiva atingida). No entanto, como se trata de ação penal privada, oquerelante
pode optar por iniciar a ação em Campinas ou em Florianópolis, no domicílio do réu.
Outras Situações Relevantes na Determinação da Competência
A complexidade da vida real exige que a lei preveja cenários específicos para a fixação da competência:
- Crimes Formais e o Momento da Consumação: Como visto, a consumação de crimes formais é peculiar. No caso da extorsão mediante telefone, onde o agente liga de um local, a vítima está em outro, e o dinheiro pode ser entregue em um terceiro local.
- Exemplo Detalhado: O agente criminoso faz uma ligação de Bangu (RJ) para a vítima na cidade de São Paulo (SP), exigindo a entrega de dinheiro no Guarujá (SP). A competência territorial deste crime de extorsão é do local da consumação, que é onde a vítima se viu constrangida e ameaçada. Portanto, o local da consumação é São Paulo, e o juízo competente será o de São Paulo. O local da ligação (Bangu) é a ação, e o Guarujá é o exaurimento, mas não a consumação.
- Crimes Permanentes e o Critério da Prevenção: Nos crimes permanentes, a consumação se prolonga no tempo. Um exemplo clássico é a extorsão mediante sequestro (
Art. 159 do Código Penal
), que pode envolver diversos cativeiros em comarcas distintas. Em tese, como a consumação se estende, houve consumação em todas as comarcas onde o sequestro se manteve. Nesses casos, o critério para definir a competência é a prevenção (Art. 83 do CPP
), ou seja, o juiz que, dentre os potencialmente competentes, se antecipou aos demais e praticou o primeiro ato decisório relevante no processo.
Conclusão
A determinação da competência territorial é um aspecto dinâmico e crucial do Direito Processual Penal
. A regra geral da Teoria do Resultado
, atrelada ao lugar da infração
, é complementada por um conjunto de exceções e regras subsidiárias que visam garantir a aplicação mais justa e eficiente da lei. Seja por crimes com particularidades como as infrações de menor potencial ofensivo, atos infracionais, homicídios plurilocais, estelionatos específicos, ou a flexibilidade da ação penal privada, o sistema legal busca adaptar-se à complexidade dos fatos. A compreensão aprofundada desses critérios é indispensável para a atuação de operadores do direito e para a própria segurança jurídica dos cidadãos.